Se, por um lado, há Espíritos que escolhem como prova estar em contato com seus maus hábitos para superá-los, não há outros que desejam estar em contato com eles para continuar a fruí-los? Eis o que Allan Kardec pergunta à Espiritualidade Superior à questão 265 de “O Livro dos Espíritos”[1]:
”Havendo Espíritos que, por provação, escolhem o contato do vício, outros não haverá que o busquem por simpatia e pelo desejo de viverem num meio conforme aos seus gostos, ou para poderem entregar-se materialmente a seus pendores materiais?”
Necessitamos analisar não apenas as respostas às questões propostas por Kardec, mas também estudar em profundidade as perguntas.
Allan Kardec propõe mais uma questão interessante aos Espíritos Superiores, no capítulo da escolha das provas.
O Codificador considera inicialmente que há Espíritos que escolhem o contato do vício como sendo uma provação, para que esses Espíritos, defrontando seus maus hábitos, demonstrem que podem superá-los, transformando-se em Espíritos melhores. Lemos, às questões 644 e 645 de “O Livro dos Espíritos” [2], que muitos Espíritos escolhem reencarnar expostos às suas más tendências e, amparados pelo Alto — como sempre todos somos amparados — e sintonizando com esse amparo, demonstram, por essa prova, terem superado sua má tendência, seu vício, seu hábito mundano. Isso é vencer o mundo, como Jesus nos recomendou:
“Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo.” (João 16:33)
Por outro lado, Kardec indaga se não há outros Espíritos que buscam este tipo de provação imbuídos de outra intenção que não a de superação, mas sim a de viverem em um meio que seja conforme seus gostos, para se entregarem aos seus pendores, às suas tendências ainda ligadas ao plano material.
Analisemos, ainda, a que Kardec se refere quando aborda o “contato com o vício”. Em francês, o termo “vício” não é utilizado principalmente para referir dependência de drogas. No idioma original das Obras Básicas, vício designa principalmente a “disposição a fazer o mal” [3]. Mesmo no idioma português, é importante considerar que o termo vício é amplo e não apenas restrito aos vícios comumente conhecidos, como vício em álcool ou outras drogas lícitas ou ilícitas. Vício, na definição léxica, consiste em defeito ou imperfeição, hábito inveterado.
Há também referência, na Codificação, a vícios, segundo a acepção de hábitos que destroem o corpo físico. Lemos, à questão 952 de “O Livro dos Espíritos” [4], que isso é considerado, pela Espiritualidade, como um “suicídio moral”, decorrente da falta de coragem e do esquecimento de Deus.
Assim, são exemplos de vícios: o egoísmo, o orgulho, a maledicência, a rebeldia, a queixa, tudo enfim que não constitui os caracteres do homem de bem. Ilustra-se claramente o uso dessa acepção da palavra vício à questão 913 de “O Livro dos Espíritos”:
“Dentre os vícios, qual o que se pode considerar radical?
‘Temo-lo dito muitas vezes: o egoísmo. Daí deriva todo mal. (...)’” [5]
Dispondo desse entendimento sobre a questão do contato com os vícios, analisemos a resposta à questão 265:
“Há, sem dúvida, mas tão-somente entre aqueles cujo senso moral ainda está pouco desenvolvido. A prova vem por si mesma e eles a sofrem mais demoradamente. Cedo ou tarde, compreendem que a satisfação de suas paixões brutais lhes acarretou deploráveis consequências, que eles sofrerão durante um tempo que lhes parecerá eterno. E Deus os deixará nessa persuasão, até que se tornem conscientes da falta em que incorreram e peçam, por impulso próprio, lhes seja concedido resgatá-la, mediante úteis provações.” [1]
Foto: Hendrio Belfort
Percebemos que a própria escolha das provas pelas quais o Espírito passará em sua futura encarnação já constitui uma prova em si: pelas suas escolhas o Espírito demonstra a sua maturidade, o seu grau de progresso, a sua compreensão da vida, bem como o conhecimento que já adquiriu de si mesmo.
Aqueles que, como no segundo caso considerado pelo Codificador, desejam estar em contato com o vício para perpetuá-lo, demonstram que são imaturos espiritualmente. São como crianças que não sabem escolher o que seja melhor para si, simplesmente escolhem aquilo que lhes satisfaz momentaneamente, mas que pode trazer prejuízo a longo ou mesmo médio prazo.
Os Espíritos respondem que realmente há aqueles que assim procedem. E esclarecem que "a prova vem por si mesma e eles a sofrem mais demoradamente". Como um mau hábito gera consequências negativas, esses Espíritos terão de suportá-las. E até quando isso ocorrerá? Até que esses Espíritos despertem, percebam que essa escolha não é a melhor para eles e desejem mudar. Deus permite que isso ocorra porque Ele não viola o nosso livre-arbítrio, permitindo que tenhamos a liberdade de escolher nossos caminhos e façamos escolhas conscientes.
Às questões 264 e 265 de “O Livro dos Espíritos” [6], lemos que a natureza de nossos pontos fracos determina as provas que escolheremos. Porém, sabemos, pela orientação constante da questão 393, que Espíritos mais desenvolvidos atuam em nossa programação [7]. Nada do que pensamos fica oculto a Espíritos mais evoluídos. É possível que o reencarnante almeje contato com suas más tendências com a finalidade de fruí-las, e enfrentará as más consequências disso até cansar-se de sofrer. Kardec nos orienta em “A Gênese”, capítulo III, item 7:
“(...) Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o remédio. Um momento chega em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida.
Instruído pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio, sempre por efeito do seu livre-arbítrio. (...)” [8]
Nem que seja para “cansarmos do erro”, ou seja, nos tornarmos conscientes de ser esse um caminho inadequado, essa temporária insistência em uma má conduta servirá — e a Espiritualidade Superior sabe disso.
Importante destacarmos que nosso livre-arbítrio está em desenvolvimento; não é ainda pleno [9]. Por isso, nem nossa escolha no mal é feita sem que Deus imponha limites razoáveis. Além disso, não precisamos cometer todos os erros para só então fugirmos deles; lembremos a questão 120 de “O Livro dos Espíritos”:
“Todos os Espíritos passam pela fieira do mal para chegar ao bem?
‘Pela fieira do mal, não; pela fieira da ignorância.’” [10]
À questão 470 de “O Livro dos Espíritos”, concluímos que ninguém reencarna com a programação de fazer o mal [11]. Isso seria incoerente com a bondade e justiça de Deus; Ele sempre nos oferece oportunidades de fazer o bem. Kardec nos orienta, no item 872 (“Resumo teórico do móvel das ações humanas”) de “O Livro dos Espíritos”:
“(...) O homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que seja arrastado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que sobrevenham, mas será sempre livre de agir ou não agir. (...)” [12]
Leia, também, neste Blog, as postagens “Expiação, Prova e Missão”, “Família Espiritual” e “O Bem e o Mal”.
Bons estudos!
Carla e Hendrio
Referências:
[1] KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”. 66ª ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1987. Questão 265.
[2] Ibidem. Questões 644 e 645.
[3] Le Dictionnaire. Palavra vice. Disponível em http://www.le-dictionnaire.com/definition.php?mot=vice. Acesso em 09 de março de 2012.
[4] KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”. 66ª ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1987. Questão 952.
[5] Ibidem. Questão 913.
[6] Ibidem. Questão 264.
[7] Ibidem. Questão 393.
[8] KARDEC, Allan. “A Gênese”. 34ª ed. Rio de Janeiro, RJ, FEB. 1991. Capítulo III, item 7.
[9] KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”. 66ª ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1987. Questão 262.
[10] Ibidem. Questão 120.
[11] Ibidem. Questão 470.
[12] Ibidem. Item 872.
Gostei! Bastante esclarecedor.
ResponderExcluir